Nelly Furtado, cantora canadense que também possui nacionalidade portuguesa, escreveu e interpreta a letra da obra musical Say It Right. Tim "Timbaland" Mosley, e Nate "Danja" Hills compuseram os instrumentos, a harmonia e a melodia dessa obra musical.[1]
Say It Right é uma música do estilo techno-groove moderado e foi lançada em 2006 (16 anos atrás). Logo no seu lançamento já teve grande sucesso comercial e alcance de público. Em muitos países, como Canadá, Croácia, França, Espanha e Estados Unidos, foi a música mais reproduzida naquele período, alcançando em cada um o Top 1 da Billboard.
Em julho de 2022, no Brasil, o produtor Wallace Kemps Macedo, conhecido como WK, criou uma música do estilo arrocha, que recebeu o título Lovezinho. É performada pela cantora Thallita Treyce Araujo, conhecida como Treyce, considerada co-autora da música. De acordo com o portal G1[2], os direitos autorais de Lovezinho foram pactuados em 80% para WK e 20% para Treyce.
Eis que, ao que parece, Lovezinho contém a melodia, a harmonia e possivelmente um dos instrumentos[3] de Say it Right. A letra da nova canção não tem relação com a original e o ritmo foi levemente alterado, apesar da adição de notas percussionistas.
Foi só no início de 2023 que a música Lovezinho tornou-se conhecida. Ela foi usada pelo dançarino Xurrasco em um vídeo, que a popularizou e a tornou “hit do carnaval”[4]. A própria cantora Treyce postou, em 15 de fevereiro de 2023, na rede social Instagram, que Lovezinho foi a 2ª música mais viral no Brasil[5].
Quinze dias depois, em 1º de março, a Nelly Furtado postou no TikTok ela própria dançando Lovezinho junto com Neymar[6]. Provavelmente neste mesmo dia, WK já havia sido notificado de violação ao Direitos Autorais. Dizemos provavelmente pois dois dias depois, em 03 de março, já haviam reportagens sobre esse caso.
Entenda o caso:
Primeiro de tudo: quem está reclamando sobre a violação aos direitos autorais não é Nelly Furtado, mas sim Timbaland e Danja, através de seus titulares – as editoras e produtoras. Isso porque, de acordo com o registro efetuado no Copyright Office norte-americano, Nelly é autora da letra e intérprete da canção, mas não compositora da melodia e instrumentos[1]. Tampouco letra ou voz de Nelly foram usadas na Lovezinho. Ao que parece, Lovezinho usou a melodia e outros elementos da obra musical – cujos autores são Timbaland e Danja.
Para esclarecer, precisamos entender que fonograma e obra musical são coisas diferentes:
Numa música existem diversos direitos autorais envolvidos. Existe a letra, a melodia, a composição de cada instrumento, a interpretação de cada artista, a produção, a mixagem, a edição, entre outros.
Quando você vai no show de um artista, você está apreciando a letra, as composições e suas intepretações ao vivo. Cada elemento tem sua proteção jurídica e, em conjunto, é uma obra musical. No copyright, isto é uma musical work. Na lei de Direitos Autorais brasileira, trata-se do artigo 7º, inciso V.
Por outro lado, se essa obra musical for fixada num suporte, ou seja, gravada (em disco físico ou digital), ela passa a se chamar fonograma. Na lei de Direitos Autorais brasileira, trata-se do artigo 5º, inciso IX. No Copyright, isto é um sound recording. E são os fonogramas que abrem as portas para outros direitos essenciais, como a reprodução, distribuição, disponibilização e circulação das obras na sociedade[2].
Por isso, ao falarmos de música no Direito Autoral, devemos ter claro que uma coisa é a letra, outra coisa é o fonograma e uma terceira coisa é a obra musical.
Ao que é possível deduzir, o que WK usou foram elementos da obra musical, ou seja, aquilo que compõem a música - notadamente a melodia e harmonia. Ao que se supõe, ele também usou parte da composição instrumental. Logo, possivelmente ele usou parte do fonograma.
O portal G1 e o jornal O Globo indicam o que aconteceu após a notificação: logo de cara WK admitiu o uso não autorizado da Say it Right:
“A gente achou o refrão da música da Nelly Furtado, e eu fiz uma modelagem"(...) “só peguei a modelagem do refrão. E se for traduzir a música dela e pegar o que eu fiz, não tem nada a ver uma música com a outra”. [3]
O que é essa “modelagem” a que ele se refere? Não é um conceito jurídico. Alguns artigos científicos demonstram que essa “modelagem” é uma técnica de ensino e pedagogia da matemática ligada à música. Em sua maioria, esse termo ‘modelagem’ é usado por músicos amadores. Resumidamente, significaria é fazer uma “engenharia reversa” na obra original, pontuando elementos que lhe agradam e, a partir destes, você elabora uma criação nova.
Sendo este o conceito usado por WK, não parece que ele fez tal “modelagem”. Relembrando alguns termos jurídicos sobre música no Direito Autoral:
Remix é o um novo registro de um fonograma, portanto é uma nova criação que foi elaborada usando uma gravação anterior - seja parcialmente, seja totalmente. Por isso, remix é uma obra derivada e você precisa de autorização do autor ou titular para explorá-la (artigo 29, incisos I, III e V da Lei de Direitos Autorais).
Sample é a criação de uma obra derivada a partir da utilização de apenas um dos elementos da obra musical. Igualmente ao Remix, se há nova criação com reprodução integral ou parcial da obra musical anterior, você precisa de autorização do titular original para sua exploração comercial. (artigo 5º, inciso VII, alínea ‘g’, e artigo 29, incisos I a V).
Portanto, de forma simples, a diferença entre sample e remix é o que foi utilizado: se parte do fonograma ou se parte da música em si. Na prática, pouco importa: para ambos você precisa de autorização do titular.
Sim, estas normas possuem exceções. Entretanto, os fatos expostos na mídia não apontam que a disputa entre Say It Right e Lovezinho estaria entre tais possibilidades.
Por sua vez, a “tradução” a que WK se refere, deve ser entendida como “versão cover”. Primeiro, porque “traduzir”, na realidade, é apenas para idiomas (art. 29, IV da LDA). Segundo, pois versão cover, principalmente em forma de fonograma, é também uma obra derivada, não é apenas uma interpretação, e por isso também precisa de autorização do autor ou titular da obra primígena.
Ainda, o caso possivelmente pode ser enquadrado como plágio. Contudo, isso requer análise técnica e comparativa das obras – algo que deve ser realizado por perito e não o faremos aqui.
Aproveitando para esclarecer uma informação nas reportagens: em sede de Direito Autoral, citar é indicar a fonte (veja o artigo 46, inciso III da Lei de Direitos Autorais). Por isso, a não ser que expresso na forma sonora, os estudiosos defendem que não existe citação em música. E, ao que se observa, Lovezinho não fez indicação ou apontou os compositores de Say it Right.
Lovezinho possivelmente é uma obra derivada não autorizada de Say It Right. Mas isso não significa que ela em si também não tenha proteção jurídica. Lembrando da diferença entre fonograma e obra musical, não esqueça que, por exemplo, o vocal de Treyce também é elemento protegido. Ou seja, você não pode sair fazendo remix de Lovezinho e explorá-la economicamente sem a autorização de WK.
Parece que WK já possui conhecimentos sobre Direito Autoral.. Em entrevista ao G1, ao que é possível interpretar, WK demonstrou assumir o risco. Inclusive[4], a Treyce disse que, ao conversar com WK:
“estava tudo certo e não ia dar nenhum problema". "Porque meu medo era esse, de acontecer o que está acontecendo agora".
As reportagens[5] indicam que WK, propõe, de partida, que 20% dos direitos autorais de Lovezinho sejam remetidos aos titulares de Say it Right. Ele usa como argumento, para seus termos negociais, um caso análogo: aquele em que James Blunt aceitou 20% de direitos autorais COM a inclusão de seu nome como co-autor na música, do estilo forró, chamada “Coração cachorro”, performada por Ávine e Matheus Fernandes.
Os titulares de Say it Right, por sua vez, requerem 100% dos direitos autorais e multa de US$ 40 mil dólares pela violação. Estes também argumentam por analogia, expressando que foi exatamente um acordo assim - de 100% de Direitos Autorais aos titulares originários – que Latino fez para a música “Festa no Apê”.[6]
Dois meses de negociações e sem acordo, os titulares de Say it Right tomaram providências. Primeiro, notificaram as plataformas digitais para remoção e indisponibilidade de Lovezinho de seus catálogos. Hoje, 10 de maio de 2023, Lovezinho não está mais disponível no Spotify, Deezer e YouTube, mas ainda está disponível na Apple Music e Amazon Music. Depois, acionaram o ECAD para retenção dos direitos patrimoniais de exibição e reprodução pública até resolução do conflito.
Este é o atual estágio do caso.
Pelo conjunto das informações e fatos disponíveis publicamente e na imprensa, incluindo as opiniões de advogados e especialistas ouvidos pelo jornal O Globo sobre este caso[7], desejamos que os argumentos de WK sejam apenas para a mídia e na esfera extrajudicial, pois em juízo eles dificilmente serão procedentes.
Existem algumas argumentações jurídicas remotamente favoráveis à WK e Treyce. Mesmo que dificilmente lhes serão procedentes, vale compartilhar ao menos uma: se o caso for judicializado, a solução menos “dolorosa” – se assim pode-se dizer – será alcançada se conseguirem forçar uma interpretação exclusivamente utilitária da Lei de Direitos Autorais brasileira. A proposta é que seus argumentos trilhem o judiciário à uma interpretação exclusivamente econômica da lei e do caso, objetivando demonstrar que a exploração da obra original (Say it Right) não foi prejudicada (tampouco os interesses dos titulares), pela música Lovezinho. Aqui, o ideal é utilizar os princípios da Teoria do bem-estar Social, principalmente as fórmulas econômicas preconizadas por Landes & Posner[8]. Ou seja, valer-se de dados reais de consumo, público-alvo, localização territorial e outros subsídios, comparando as obras e tentando demonstrar que Lovezinho teria provocado aumento de consumo à própria Say it Right. Portanto, que Lovezinho haveria provocado majoração do consumer surplus total de Say it Right.
E no final, é possível apaziguar a cantora Treyce, que hoje tem sua persona vinculada à uma violação autoral. Tal impacto é mais facilmente superado, pois o público geralmente não deixa de consumir, apreciar um artista ou ir aos seus shows por causa destes conflitos.
Em conclusão: no atual estágio, os fatos públicos sobre este caso confirmam que assumir qualquer tipo de risco, em sede de Direitos Autorais, não é algo leviano. Pelo contrário, deve ser profundamente analisado e, de preferência, por especialistas.
Referências - parte 1
[1]https://cocatalog.loc.gov/cgi-bin/Pwebrecon.cgi?SAB1=Say+it+Right&BOOL1=all+of+these&FLD1=Keyword+Anywhere+%28GKEY%29&GRP1=AND+with+next+set&SAB2=Timbaland&BOOL2=as+a+phrase&FLD2=Keyword+Anywhere+%28GKEY%29&PID=oxWkC0XrDwf5YLAYRzSe5f7XZvxF&SEQ=20230509183049&CNT=25&HIST=1 [2] https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/03/03/nelly-furtado-pede-direitos-autorais-por-lovezinho-e-brasileiros-se-dizem-abertos-a-acordo.ghtml [3] Ao que pudemos observar, trata-se da melodia do contrabaixo. [4] https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/03/03/nelly-furtado-pede-direitos-autorais-por-lovezinho-e-brasileiros-se-dizem-abertos-a-acordo.ghtml [5] https://www.instagram.com/eutreyce/ [6]Nelly Furtado cobra os direitos autorais do hit do carnaval brasileiro “Lovezinho“ (cnnbrasil.com.br) Referências - parte 2 [1]https://cocatalog.loc.gov/cgi-bin/Pwebrecon.cgi?SAB1=Say+it+Right&BOOL1=all+of+these&FLD1=Keyword+Anywhere+%28GKEY%29&GRP1=AND+with+next+set&SAB2=Timbaland&BOOL2=as+a+phrase&FLD2=Keyword+Anywhere+%28GKEY%29&PID=oxWkC0XrDwf5YLAYRzSe5f7XZvxF&SEQ=20230509183049&CNT=25&HIST=1 [2] https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fblog.groover.co%2Fpt%2Fdicas-para-musicos%2Fdireitos-autorais-groover%2F&psig=AOvVaw377wg4V5DMK9td9mRpv64r&ust=1684239469674000&source=images&cd=vfe&ved=2ahUKEwjevdyLp_f-AhX1LLkGHRnRCo8QjRx6BAgAEAw [3] https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/03/03/nelly-furtado-pede-direitos-autorais-por-lovezinho-e-brasileiros-se-dizem-abertos-a-acordo.ghtml [4]https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/05/04/treyce-quer-tentar-recolocar-lovezinho-no-ar-marcou-minha-vida-nao-posso-deixar-essa-musica-morrer.ghtml [5]https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/05/04/treyce-quer-tentar-recolocar-lovezinho-no-ar-marcou-minha-vida-nao-posso-deixar-essa-musica-morrer.ghtml [6]https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2023/05/04/treyce-quer-tentar-recolocar-lovezinho-no-ar-marcou-minha-vida-nao-posso-deixar-essa-musica-morrer.ghtml [7]https://oglobo.globo.com/cultura/musica/noticia/2023/05/versao-ou-citacao-entenda-as-alegacoes-de-nelly-furtado-e-treyce-na-disputa-pelo-hit-do-carnaval.ghtml [8] LANDES, William M. POSNER, Richard A. The economic structure of intellectual property law. Cambridge: Harvard College. 2003
Comments